31 de Outubro

Um dia, fui a um lar de idosos no Alentejo. Sentei-me no chão, encostei-me à parte de trás de uma cadeira onde estava uma senhora aquecendo-se à lareira e comecei a falar com a velhinha com quem ia conversar naquele bocadinho, que estava à minha frente a fazer malha sentada numa cadeira. Nestas situações de solidão, gosto de me sentar no chão, abaixo da pessoa com quem vou falar, para ela se sentir um bocadinho mais importante... mas depende do caso! A Dona Almerinda era uma velhinha muito querida, simpática, que falava em verso. Tudo o que ela dizia, rimava!

Mas não é desta senhora que venho falar hoje, talvez noutro dia, já que esta tinha uns versos tão engraçados que até apontei alguns no meu bloco... e vale a pena lê-los! Vou-te falar antes da senhora que estava na cadeira em cujas costas me encostei. Passado uns minutos de eu estar ali sentado, a senhora deu por mim nas suas costas. Apalpou a parte de trás da cadeira com a sua mão esquerda e sem mexer mais nenhuma parte do corpo, até sentir a minha cabeça. Deu um grito enorme e começou a insultar-me violentamente. A pobre coitadinha tinha-se assustado...

Também assustado, afastei-me. E olhei melhor. Aquela senhora, para além de não poder mexer as pernas, era cega. Daquelas cegueiras que fazem impressão de reparar, com os olhos abertos e baços, cinzentos e com feridas. Ganhei coragem e cheguei perto, devagarinho. A velhinha esbracejava para me acertar e continuava a rogar-me pragas, sendo a mais "levezinha"...

- Vá para o raio que o parta!
- Tenha calma, minha Senhora. Assustei-a sem querer, não queria...
- Vai de retro ó demo cornudo!
- Minha Senhora, por favor... deixe-me pedir desculpa. Não fiz por mal...

A Senhora esbracejava ainda, furiosa. A técnica do lar aproximou-se e deu-lhe um raspanete. A Dona Almerinda também a chamava à atenção, só que em verso e rima. E dizia-me para não lhe ligar porque ela tinha mau feitio. Eu não estava nada ofendido, tive mesmo pena do estado daquela velhinha cega. Mas de repente parecia estar outra vez calma. Não quis perturbar-lhe novamente a paz e voltei à minha velhinha das rimas. Rezámos os dois uma Avé Maria pela Paz interior de todos aqueles que mais precisam. Passado um bocadinho, a cega chamou em voz tremida:

- Rapazote!

Confesso que hesitei em ir lá, não fosse eu ser novamente recebido de uma forma algo... hostil. Medos que deitei fora logo, e avancei. A senhora estava comovida. Chorava daqueles olhos cegos, baços de doença e de abandono. Estendeu a sua mão trémula, que agarrei.

- Minha senhora, não é preciso...
- Desculpa meu filho. Desculpa. - E desatou a chorar ainda com mais força.
- Não precisa, minha senhora. A sério! Já passou...
- Mas desculpa-me?
- Sim, claro! Olhe, eu chamo-me António. E a Senhora?
- Rafaela.
- Muito gosto, Dona Rafaela! Olhe, vou passar aqui em Mértola esta semana, e depois volto aos meus estudos em Lisboa. Agora está na hora de me ir embora, estão à minha espera. Mas amanhã gostava muito de vir aqui falar consigo, posso?
- Claro, filho. Até gostava. O menino tem uma mão bonita. Não vejo, mas sinto!
- Obrigado! Mas saiba que a sua mão é que é mesmo bonita!
- Mas já é velhinha, como eu...
- Não é nada velhinha... é jovem há mais tempo! Olhe, podemos rezar uma Avé Maria antes de eu ir? Trago aqui uma imagem de Nossa Senhora.

Para meu espanto, a Dona Rafaela agarrou a imagem com uma mão e a outra continuou a agarrar a minha. Com força! O seu rosto era agora de uma extrema doçura, com um sorriso terno e os seus olhos sempre perdidos naquele nevoeiro... Só me apetecia abraçá-la. Confesso que também eu me comovi. Rezámos uma Avé Maria e um Pai-Nosso, dando todo o sentido a cada palavra que sussurrávamos nas nossas duas vozes tremidas de emoção.

- Até amanhã Dona Rafaela.
- Adeus, filho.

Sempre que lá ia, passava sempre uns 5 minutos que fosse com a Dona Rafaela. Mas ainda tive boas conversas com aquela senhora... no fim de tudo, a técnica do lar chamou-me à parte e agradeceu-me a atenção com a Rafaela.

- Porquê? Não fiz nada que os outros voluntários não fizessem!
- Sim, mas é que a Dona Rafaela já não dizia uma palavra há 3 meses...

Realmente, Deus faz-nos sentir tão especiais quando fazemos as coisas por Ele... e nunca esquecerei aqueles olhos baços a chorar por mim, depois comigo, e desde sempre com Deus. Obrigado Senhor pela vida da Rafaela! Hoje gostava de pedir pela sua vida, se ainda for viva. Ou pela sua Alma, se o seu marcado corpo já morreu. E obrigado por me conservares neste corpo são, enquanto quiseres.

AVC